MEC cria kit anti-homofobia para combater o preconceito na escola. Por Tory Oliveira. Foto: Eduardo Knapp/Folhapress
MEC cria kit anti-homofobia para combater o preconceito na escola
Depois de discutir com uma colega na aula de Educação Física, Alecks-  Batista foi abordado dentro dos muros do colégio particular onde  estudava pelo pai da menina. “Ele me chamou de bichinha, viado e  aidético”, lembra, que na época tinha 16 anos. A diretoria do colégio de  classe média alta de Curitiba, no Paraná, não se manifestou sobre a  agressão. “E eu me vi ali sozinho.” Hoje com 20 anos, estudante de  Ciências Contábeis e gay assumido, Alecks ainda se lembra da sensação de  isolamento, das piadinhas e da discriminação praticada pela maioria dos  professores e alunos durante o Ensino Médio. Na sua época de escola,  Alecks não era convidado para festas ou para jogos de futebol – na maior  parte do tempo, circulava acompanhado apenas de amigas mulheres ou com  dois outros colegas, também gays.
A situação vivenciada por Alecks não é exceção – investigações  realizadas pela Unesco e também pelas ONGs Reprolatina e Pathfinder  demonstram que há forte presença da homo-lesbo-transfobia (discriminação  contra gays, lésbicas, transexuais e travestis) dentro das escolas  brasileiras. Publicada em 2004, a pesquisa da Unesco revelou, por  exemplo, que um quarto dos estudantes entrevistados não gostaria de ter  um colega homossexual na mesma sala. De acordo com a pesquisa  qualitativa realizada pela Reprolatina em 2009 em 11 capitais  brasileiras, evasão escolar, tristeza, depressão e até casos de suicídio  são observados entre a população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e  transgêneros) como consequência de um ambiente escolar homofóbico. “O  ambiente escolar é em geral hostil para o exercício da diversidade  sexual. Os professores não estão preparados e não têm compreensão maior  da sexualidade e da homossexualidade”, explica a pesquisadora  responsável pelo estudo, Margarita Díaz.
Diante do quadro, o Ministério da Educação, em parceria com entidades  ligadas aos direitos LGBTs, produziu um kit de material educativo que  será distribuído oficialmente para os professores de 6 mil escolas  públicas a partir do segundo semestre deste ano. O projeto – batizado  informalmente de “kit anti-homofobia” – é uma das ações do programa  federal Escola sem Homofobia. Polêmico, o assunto já vem causando  celeuma, principalmente na internet, onde grupos se manifestam  acaloradamente a favor e (principalmente) contra o material, chamado de  “kit gay” pelos seus opositores.
O kit
Destinado ao Ensino Médio, o kit é composto de caderno, pôster, carta ao  gestor da escola, seis boletins (boleshs) e cinco vídeos. “É um  material para a promoção dos direitos humanos, com o objetivo de fazer  da escola um espaço de todas as pessoas, onde se possa aprender a  conviver com a diversidade”, justifica Maria Helena Franco, uma das  coordenadoras de criação do kit de material educativo. Considerado  peça-chave do kit, o caderno é um livro de 165 páginas, no qual o  educador encontra referências teóricas, conceitos e sugestões de  atividades e oficinas para se trabalhar o tema da diversidade sexual nas  escolas. “O caderno ensina como fazer um projeto político-pedagógico a  ser assumido pela escola como um todo sobre esse enfrentamento da  violência homofóbica”, conta Maria Helena. Escritos em linguagem jovem e  acessível, os boletins seriam distribuídos entre os estudantes e também  tratam da temática da diversidade sexual, com jogos, depoimentos e  sugestões de filmes.
Entretanto, o objeto de maior polêmica é a parte audiovisual do kit,  que inclui três pequenos vídeos produzidos especialmente pela ONG Ecos,  que trabalha com o tema desde 1989. Produzidos com diferentes estéticas –  teledramaturgia tradicional, animação de fotos e desenhos – os vídeos  abordam de forma coloquial temas específicos como lesbianidade,  transexualidade e bissexualidade. “São temas muito estigmatizados e  pouco compreendidos”, explica Vera Lúcia Simonetti Racy, uma das  coordenadoras da criação do kit do material educativo.
Criado por uma equipe multidisciplinar, o kit completo levou cerca de  dois anos para ser pesquisado, construído e validado. Apenas o roteiro  de um dos filmes, sobre o namoro de duas meninas, demorou oito meses  para ser aprovado.
Ousada e polêmica, a proposta do material educativo atende a uma  demanda das entidades que lutam pelos direitos LGBTs e também dos  educadores – que não encontravam subsídios para trabalhar o tema em aula  – além de estar articulada com políticas públicas de combate à  homofobia de maneira geral. “O que a gente quer é que o professor esteja  atento a essa situação de homofobia. A escola precisa ser um espaço de  respeito e de formação cidadã.”, conclui Carlos Laudari, presidente da  ONG Pathfinder.
Preconceito velado
Realizada em Manaus, Porto Velho, Recife, Natal, Goiânia, Cuiabá, São  Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Curitiba, a  pesquisa da Reprolatina procurou investigar qual era o conhecimento e a  atitude prática de educadores e alunos a respeito da homofobia nas  escolas. Foram entrevistadas 1,4 mil pessoas, desde secretários da  Educação até pessoas que fazem parte do cotidiano da escola, como  merendeiras e porteiros, passando por diretores, coordenadores,  professores e estudantes.
Foi detectado um ambiente altamente homofóbico – resultado semelhante  em todas as cidades – uma realidade, porém, em geral negada pela  comunidade escolar. Segundo Margarita Díaz, quando perguntados sobre a  existência de homofobia na escola, a resposta dos participantes da  pesquisa era quase sempre negativa. Entretanto, quando se começava a  discutir sobre o que acontecia quando havia a presença de um menino gay  ou uma menina lésbica na escola, os relatos mostravam muitas piadas e  atitudes potencialmente ofensivas. Tais reações não eram catalogadas  como homofobia. “Elas são enxergadas como brincadeiras. Na verdade, essa  ‘brincadeira’ é, sim, uma reação homofóbica, mas ela está muito  naturalizada”, explica Margarita.
A ausência de aulas sobre educação sexual que contemplem a  diversidade também é apontada como um dos fatores que contribuem para a  permanência da homofobia nas escolas. Segundo especialistas, a educação  sexual disponível para a maioria dos estudantes é essencialmente  heteronormativa, ou seja, reproduz um modelo que coloca a  heterossexualidade como norma, o que acaba classificando outras  manifestações de gênero, amor e sexualidade como desvios. “É uma  educação sexual baseada no senso comum da sociedade, e não uma educação  sexual antenada com as políticas públicas”, conta Margarita Díaz. Outro  ponto percebido durante a pesquisa era o desconhecimento pelos  educadores da existência de políticas públicas voltadas ao combate da  homofobia.
Evasão escolar
Além de casos de violência física, uma forma quase invísivel de  violência nas escolas – que inclui o isolamento, rejeição,  brincadeirinhas e piadas – também costuma marcar os jovens homossexuais  para a vida toda. “Especialmente na adolescência, a gente quer se  enturmar. Quando você é rejeitado pelos seus pares, é um sofrimento  horrível”, conta a terapeuta especializada em diversidade sexual e  questões de gênero, Edith Modesto, que também é fundadora do Grupo de  Pais de Homossexuais (GPH) e do Projeto Purpurina, que atende jovens de  14 a 24 anos. “Eles falam da escola com muita mágoa, lembram da  discriminação, do desprezo e da rejeição.”
O quadro é ainda mais grave quando se analisa a situação de  estudantes transexuais e travestis. Segundo especialistas, não há espaço  para eles na escola. Além de o preconceito ser maior, questões como o  uso do nome social na chamada ou até mesmo situações prosaicas como qual  banheiro o jovem travesti deve usar pesam e acabam contribuindo para o  abandono da escola. “Existe uma porcentagem dos nossos jovens que está  sendo socialmente discriminada e forçada a assumir um papel sexual que  não é dela”, lamenta Carlos Laudari. “A gente pretende que a escola seja  uma escola cidadã, em que o aluno brasileiro aprenda a viver com a  diferença.”
“Outro aspecto importante da necessidade de esse tema estar na escola  é que certos jovens acabam saindo, porque o sofrimento é tão grande e o  ambiente é tão agressivo que a criança ou o adolescente acaba  desistindo de estudar. Os índices de evasão escolar são significativos  para essa população”, explica Vera Lúcia. Segundo ela, o papel mais  importante do kit anti-homofobia é informar e contribuir para erradicar a  violência e o preconceito. “Na medida em que você trabalha esse tema na  escola e consegue criar uma convivência melhor e mais respeitosa, isso  acaba se refletindo nas relações sociais como um todo.”
Tory Oliveira
Revista Carta na Escola